sexta-feira, 29 de junho de 2012

“De boas intenções o inferno está cheio…” – em voto de Desembargador do TJDFT contra exigência abusiva em edital

O Desembargador Romão C. Oliveira, relator do Mandado de Segurança nº 1998 00 2 000572-9, impetrado contra ato de Secretário de Estado do DF, em seu voto condutor do julgamento unânime deu um exemplo de como as exigências abusivas devem ser repelidas pelo Judiciário.
A seguir, parte do voto (veja-se, ao final, sobre a expressão “… o inferno está cheio”):

Pretende a impetrante sua habilitação no certame, asseverando que apresentou alvará de funcionamento e, por isto mesmo, restou superada a exigência estampada na cláusula editalícia já enfocada (alínea "a", do item 2.4.1.5 do edital), que reclama a comprovação de recente vistoria da empresa fornecedora de produtos alimentícios pelo serviço de vigilância sanitária.
A cláusula em apreço encontra-se assim redigida:
"2.4.1.5 - Outros documentos que estiverem relacionados no Anexo deste Edital:
a) Certificado ou Declaração ou qualquer documento oficial, emitido pelo órgão competente, que comprove que a empresa fornecedora foi vistoriada pelo Serviço de Vigilância Sanitária Estadual ou Municipal do setor da Agricultura nos últimos 3 meses. O documento deve demonstrar que a empresa está apta para o seu funcionamento regular."
Como se vê, a autoridade formulou exigência cujo cumprimento, na mais das vezes, é impossível. Vejamos bem: a norma em comento pretende que a licitante faça prova de que foi vistoriada pelo Serviço de Vigilância Sanitária. Logo, se tal inspeção, que não depende da vontade da impetrante mas da pachorra do agente público, não houver ocorrido no lapso temporal indicado, a impetrante estará alijada do certame. E se assim é verdade, tenho como certo que a norma fustigada não pode subsistir. Há de ser considerada como não escrita.
Como é de larga sabença, o ordenamento jurídico não permite que seja incluída no edital cláusula ou condição que comprometa, restrinja ou afaste o caráter competitivo. E como já foi demonstrado, a cláusula suso transcrita está a depender da rigorosa exação do agente do Serviço de Vigilância Sanitária. Se esse serviço houver falhado, nos termos como a norma foi redigida, o concorrente será inabilitado. De sorte que a inabilitação ocorreria por fato alheio à vontade do concorrente, o que o direito não tolera.
De mais a mais, no caso presente, a impetrante apresentou o respectivo alvará de funcionamento, expedido em 11 de novembro de 1996, constando a lista dos bens que são comercializados pela impetrante.
E é bom que reste assentado que também tenho o entendimento de que a autoridade pode e deve inserir no edital de concorrência cláusula assemelhada à que ora é enfocada, no sentido de evitar que a Administração venha a contratar com comerciante relapso que não observa as regras básicas de saúde pública. O que não podia e não pode, segundo meu juízo, é criar uma situação em que o concorrente haverá sempre de depender da ação de terceiro. Noutras palavras: a deficiência repousa na redação que fora dada à cláusula em apreço. A intenção é boa. Todavia, proclama a sabedoria popular que de boas intenções o inferno está cheio.

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Advogado, palestrante, professor especialista em Direito Administrativo (com ênfase na matéria licitações públicas e concursos públicos), escritor e Doutor no Curso de "Doctorado en Ciencias Jurídicas y Sociales" da UMSA - Universidad del Museo Social Argentino, em Buenos aires. Ex-Coordenador Acadêmico Adjunto do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública do IMAG/DF - Instituto dos Magistrados do Distrito Federal. Para contatos: Brasília -DF, tel. 61-996046520 - emaildojuan@gmail.com