terça-feira, 23 de julho de 2013

Sobre contratos de uso temporário de áreas públicas em portos organizados - Posição do TCU

Julgado interessante a respeito do assunto que mostra a posição do Relator (peço paciência por tão longa transcrição, mas vale para se entender bem o que é defendido), confirmada ao final no Acórdão:

Relator: Ministro Aroldo Cedraz (Ac. 1514/2013 – TCU – Plenário; sessão de 19.06.2013).

VOTO

"Trata-se de Representação formulada pela Secretaria de Controle Externo em Alagoas, fundada em possível concessão irregular de uso de área no interior do Porto de Maceió (APMc), entidade vinculada à Companhia Docas do Rio Grande do Norte (Codern). Centradamente o uso temporário de área com extensão de 26.500 m², contratada com a empresa Jaraguá Equipamento Industriais Ltda. e aprovada pela Resolução Antaq nº 2.348/2012.

...

5. Temos, portanto, a modalidade de uso temporário, que difere das de concessão, permissão, autorização e arrendamento, este último previsto nos artigos 4º, inciso I, e 34 da Lei nº 8.630/1993 e objeto do Acórdão nº 2.896/2009 – Plenário (o arrendamento como modalidade de serviço público). De fato, o contrato de uso temporário não está previsto na referida Lei dos Portos, hoje decaída, entretanto, dada sua natureza distinta do arrendamento (o uso temporário caracteriza-se pela exploração de área por empresa e para as suas específicas atividades empresariais), trata-se de atividade econômica e não de serviço público. Aí está um primeiro cuidado hermenêutico: a Antaq foi criada em 2001 por conduto da Lei nº 10.233, ou seja, até então não havia órgão regulador para tratar das coisas da regulação.

6. O segundo cuidado hermenêutico prévio é o de olhar as coisas da administração dos portos não pelas lentes do inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal, mas sim pelo capítulo constitucional que lhe é específico e condizente: o Capítulo I do Título VII, ou seja, Dos Princípios Gerais da Ordem Econômica. Volto às concepções dos modernamente denominados Direito Privado Administrativo e Direito Econômico Administrativo, aos quais fiz referência em outras assentadas como razões jurídicas de decidir.

7. Daí advém uma diferenciação essencial ou o terceiro e último cuidado hermenêutico: uma coisa é administrar bens imóveis públicos ociosos para fins meramente arrecadatórios ou para simples destinação por força da mencionada ociosidade; outra, completamente distinta, é o uso de bens imóveis públicos para as atividades de incentivo e planejamento da atividade econômica (art. 174 da Constituição Federal).

8. Reconheço que esses cuidados são pouco utilizados na prática do direito administrativo brasileiro. Vasco Pereira da Silva, consagrado autor português do referido ramo do Direito, nos fala da necessidade de uma psicanálise cultural do Direito Administrativo, capaz de superar os traumas do passado e lidar com as realidades e desafios do presente. Dito de outra forma, estamos no fim da era de um direito administrativo estatal para um direito administrativo de governança (in Passeando pela Europa do Direito Administrativo. Revista da PGM, nº 21, Porto Alegre, 2007, p. 300) ou Administração Infraestrutural do Estado Pós-Social, acepção de Heiko Faber (Vorbemerkungen zu einer Theorie des Verwaltungsrechts in der nachindustriellen Gesellschaft, 1989, p. 291). A compulsão de ter a licitação como um fim em si, equiparado aos demais princípios constitucionais substantivos, deverá ser substituída pela concepção instrumental de ver a licitação tão somente como meio, entre tantos outros, de administrar a infraestrutura nacional para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Enfim, onde houver possibilidade de licitar que se faça. Por outro lado, devem ser dados espaços discricionários à Administração quando exigidos pela governança ou pelas próprias condições intrínsecas da atividade e pelos caminhos mais eficientes e eficazes conduzidos pela realidade. O que se requer é a implementação do controle por princípios e pela razoabilidade.

9. Disto isso, passo a sindicar a Constituição no referido capítulo Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Assim sendo, a ordem econômica visa, em primeiro lugar, a assegurar a vida digna, enquanto os bens públicos estão voltados para a realização dessa tarefa, inclusive para viabilizar a busca pelo pleno emprego (art. 170 da Constituição, caput e inciso VIII).

10. De outra, tenho para mim que os artigos 173 e 175 da Constituição Federal se limitam reciprocamente. Explico melhor. Segundo nossa Lei Maior, a exploração de portos será serviço público se caracterizado o interesse coletivo em sua prestação. Assim sendo, no âmbito da legislação de portos há diferença essencial entre porto organizado e terminal de uso privado. Vou mais longe, o que faço para afirmar que dentro do terminal de uso privado não podem existir atividades de interesse coletivo ou difuso. Ao contrário, dentro do porto organizado podem conviver, observado o interesse econômico público (ou social), a exploração direta (ou mediante concessão) da atividade econômica por relevante interesse coletivo e a exploração privada da atividade econômica, guardada apenas a não descaracterização das qualidades do porto organizado. Aliás, quando de meu Voto sobre os terminais de uso privado, uma das questões que se colocava era a do problema de competição entre estes e os portos organizados. Aqui estaria uma fonte de receita para estes últimos, como forma de contrabalançar as desvantagens comparativas. De tudo retiro o efeito relacional dos artigos 173 e 175 da Constituição, pois quando se limitam são capazes de se harmonizar, sem que um afaste completamente o outro. De outra, vejo na Constituição Federal que a licitação se faz necessária para a prestação de serviços públicos quando se der mediante concessão ou permissão (art. 175), cujo rol de outorgas sob cada uma das duas modalidades foi descrito na Lei nº 10.233/2001. Dito de outra forma, na hipótese de atividade econômica dentro de porto organizado já se abre o caminho constitucional para a ausência de licitação. A resposta ainda não está de todo completa a esta altura de meu Voto, pois a convivência entre serviço público e atividade privada pode ser fronteiriça. Exatamente daí decorre a necessidade de regulação, notadamente as funções de planejamento e incentivo da atividade econômica (art. 174 da CF).

11. Nesse sentido, foi editada a Lei nº 10.233/2001, a qual estabelece, em seu art. 11, os princípios gerais de gerenciamento da infraestrutura aquaviária, dos quais destaco: promover o desenvolvimento econômico e social e ampliar a competitividade do País no mercado internacional. Especificamente quanto à esfera de atuação da Antaq transcrevo os dispositivos aqui aplicáveis:

“Art. 23. Constituem a esfera de atuação da Antaq: II – os portos organizados e as instalações portuárias neles localizadas; V – a exploração da infraestrutura aquaviária federal.

Art. 27. Cabe à ANTAQ, em sua esfera de atuação: IV – elaborar e editar normas e regulamentos relativos à prestação de serviços de transporte e à exploração da infraestrutura aquaviária e portuária, garantindo isonomia no seu acesso e uso, assegurando os direitos dos usuários e fomentando a competição entre os operadores;”

12. A novel Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013) explicitou o óbvio que estava implícito no inciso IV do art. 27 da Lei nº 10.233/2001. Tudo conforme aquela concepção doutrinária da lei explicitadora (na definição do Professor Jorge Reis Novais), pois explicita o conteúdo imanente de princípios, direitos e competências. Falo do artigo 7º da referida Lei nº 12.815/2013, assim redigido:

“Art. 7º A Antaq poderá disciplinar a utilização em caráter excepcional, por qualquer interessado, de instalações portuárias arrendadas ou exploradas pela concessionária, assegurada a remuneração adequada ao titular do contrato.” (grifei)

13. Não se trata de uma lei em branco, dando poderes ilimitados à Antaq. Ao contrário, as balizas (“programa de realização normativa” na expressão de Bernhard Wolf) dentro das quais se deverá movimentar a Antaq (também presentes na antiga Lei dos Portos) estão dispostas no artigo 3º da Lei nº 12.815/2013:

“Art. 3º A exploração dos portos organizados e instalações portuárias, com o objetivo de aumentar a competitividade e o desenvolvimento do País, deve seguir as seguintes diretrizes: I – expansão, modernização e otimização da infraestrutura e da superestrutura que integram os portos organizados e instalações portuárias; III – estímulo à modernização e ao aprimoramento da gestão dos portos organizados e instalações portuárias, à valorização e à qualificação da mão de obra portuária e à eficiência das atividades prestadas; V – estímulo à concorrência, incentivando a participação do setor privado e assegurando o amplo acesso aos portos organizados, instalações e atividades portuárias.” (os grifos são meus)

14. Dito isso, não se pode falar que a Resolução Antaq nº 2.240/2011 inova primariamente no ordenamento, mas apenas disciplina o uso provisório, de caráter excepcional, por qualquer interessado, de instalações portuárias arrendadas ou concedidas. Trata-se, como diz Luís Roberto Barroso, de “um espaço de legítima discricionariedade” reservado às Agências Reguladoras. O poder normativo das agências reguladoras, de matriz diretamente constitucional, requer um espaço discricionário deixado pelo legislador (reserva legal relativa) para permitir a flexibilidade inerente ao modelo de economia regulada (lembro, nossa Constituição não escolheu o modelo de economia planificada), mas regrado por princípios e diretrizes constantes na Lei dos Portos (Standards) (a respeito vide Luís Roberto Barroso, Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo. Renovar, 2003, p. 174-188).

14.1. Tais espaços legais propositadamente pouco densificados estão conforme a opção constitucional e legal pela regulação por conduto de agências autônomas, ou seja, a troca das opções políticas pelas decisões técnicas. Com isso, a reserva absoluta de lei não convive com os fundamentos legitimadores das agências reguladoras. Tal competência dispositiva inerente à ideia das agências (poderes implícitos ou imanentes), ou mesmo deixada explicitamente no texto da Lei 12.8125/2013 especificamente para a Antaq, é plenamente aceita no direito comparado, tal como nos contam Jorge Miranda e Vital Moreira (apud Luis Cabral de Moncada. Lei e Regulamento. Coimbra, p. 1088). 15. Ademais, tecnicamente, a Antaq não editou lei em sentido estrito. Trata-se, em verdade, da chamada regulação geral-concreta, pois determinada por um círculo de destinatários preciso (os portos organizados) e objeto determinado (finalidades coordenadas pelos interesses público e econômico).

16. Ora, diante de espaços ociosos dentro dos Portos Organizados, até estrategicamente deixados para fins de suprir necessidades decorrentes da mobilidade dos mercados, seria melhor deixá-los ociosos ao invés de flexibilizar e agilizar normas de “uso temporário” com prazos bastante reduzidos (18 a 60 meses) em relação aos arrendamentos e concessões? Seria necessária uma licitação quando não existem outros interessados manifestos, apenas para cumprir uma formalidade inexigível e fadada ao fracasso? A falta de razoabilidade das questões precedentes, mais ainda quando estamos a falar de Direito Econômico Administrativo, falam a favor da tese dos “espaços de legítima discricionariedade” normativa das agências reguladoras.

17. Em termos concretos, conforme consta da instrução da Unidade Técnica, o Porto de Maceió contava com 50% de sua área útil ociosa em 2011. Além do aproveitamento dessas áreas em nítido incentivo da atividade econômica (mandamento constitucional), a Antaq regulou o mercado direcionando-o ao interesse público de atendimento de plataformas off-shore (pré-sal) e movimentação de cargas não consolidadas no porto. Nesses termos, a Jaraguá Equipamentos Industriais contratou o uso temporário da área para “integração de equipamentos on-shore e off-shore, especificamente plataformas e módulos de exploração de óleo/gás, equipamentos de processos petroquímicos e de movimentações pesadas, bem como ponto de expedição natural de grandes equipamentos, sistemas e estruturas” (peça 8, p. 1). A Jaraguá Equipamentos construiu um escritório e estava em vias de iniciar suas obras (peça 7), talvez não o fazendo em função da insegurança causada pelo questionamento da própria Resolução da Antaq neste Tribunal de Contas.

17.1. Para Alagoas o empreendimento representa investimentos na ordem de R$ 12 milhões e 800 empregos diretos e indiretos, prestigiando, portanto, o mandamento constitucional do desenvolvimento econômico do Estado e a busca do pleno emprego. Além disso, a resolução da Antaq prestigia outro mandamento constitucional, porquanto contribui para a exploração do petróleo, um bem constitucionalmente protegido e estratégico para a economia nacional.

18. Como demonstrado acima, a resolução da Antaq transita no legítimo espaço de discricionariedade reservado às agências reguladoras. Portanto, o controle que se faz sobre o referido diploma é de conformação a princípios e do exercício do referido poder normativo. Nesse sentido, aplico a denominada doutrina da tripartição, no sentido de competir ao TCU o controle do excesso (ou abuso), da deficiência e da ausência do poder discricionário, bem assim, uma vez regularmente utilizado o poder discricionário, cobrar-lhe a vinculação de seus atos (Robert Alexy. Vícios no Exercício do Poder Discricionário. Revista dos Tribunais, ano 89, vol. 779, setembro 2000, p. 11-46). E como demonstrei acima, não verifiquei qualquer excesso ou deficiência, uma vez ser possível a prática de atividade econômica dentro de portos organizados em áreas então ociosas, mediante pagamento de tarifas, sem exclusividade e de ocupação precária. Ademais, o objeto do uso temporário tem nítida submissão do interesse econômico a interesse público e a realização dos princípios gerais constitucionais da ordem econômica.

18.1. No que concerne ao controle de princípios, o princípio da transparência foi resguardado pela edição de uma norma pelo agente regulador, publicada em diário oficial da União, tratando a possibilidade de qualquer interessado se candidatar às áreas ociosas e ao controle dos pleitos realizados previamente pela Antaq, a quem cabe homologar e aprovar previamente a contratação do uso temporário.

18.2. Os princípios da imparcialidade e da isonomia encontram-se preservados pelo parágrafo único do art. 36 da Resolução Antaq nº 2.240/2011 (processo seletivo simplificado em caso de mais de um interessado e indisponibilidade física para alocação concomitante). Anoto, por fim, que os princípios da imparcialidade e da isonomia se configuram como limites internos do poder discricionário (Diogo Freitas do Amaral. A Evolução do Direito Administrativo. Braga, 1986, p. 11), não se podendo considerá-los como realizáveis unicamente pelas vias dos procedimentos administrativos vinculados, como a licitação pública.

19. Por todo o exposto, Voto no sentido de conhecer da representação, uma vez preenchidos os requisitos de admissibilidade, para, no mérito, considerá-la improcedente pelas razões de fato e de direito por mim deduzidas."

Sala das Sessões, em 19 de junho de 2013.

AROLDO CEDRAZ - Relator - ACÓRDÃO Nº 1514/2013 – TCU – Plenário.

1. Processo nº TC 046.138/2012-9.

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ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão de Plenário, diante das razões expostas pelo Relator, com fundamento no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno do TCU, e no art. 132 da Resolução TCU 191/2006. 9.1. conhecer da presente representação, para, no mérito, considerá-la improcedente; ... 13.1. Ministros presentes: Valmir Campelo (na Presidência), Walton Alencar Rodrigues, Benjamin Zymler, Aroldo Cedraz (Relator), Raimundo Carreiro, José Jorge, José Múcio Monteiro e Ana Arraes. 13.2. Ministro-Substituto presente: André Luís de Carvalho. (Assinado Eletronicamente) VALMIR CAMPELO (Assinado Eletronicamente) AROLDO CEDRAZ na Presidência Relator.

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Advogado, palestrante, professor especialista em Direito Administrativo (com ênfase na matéria licitações públicas e concursos públicos), escritor e Doutor no Curso de "Doctorado en Ciencias Jurídicas y Sociales" da UMSA - Universidad del Museo Social Argentino, em Buenos aires. Ex-Coordenador Acadêmico Adjunto do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo e Gestão Pública do IMAG/DF - Instituto dos Magistrados do Distrito Federal. Para contatos: Brasília -DF, tel. 61-996046520 - emaildojuan@gmail.com